No contexto da discussão sobre as identidades, e em particular no campo da ação dos novos movimentos sociais, o campo comunicacional emerge como espaço de luta política, decisivo e não apenas complementar de outras instâncias em que se encerra a dinâmica histórica. As novas tecnologias de comunicação possibilitam um redimensionamento dos modos de organização de inúmeros movimentos sociais como, por exemplo, o feminismo, que nesse contexto é atualizado por uma nova prática denominada Ciberfeminismo. O Ciberfeminismo desde seu início atualiza suas relações históricas com outros feminismos. A partir dessa premissa, o movimento mapeia as possibilidades de novos discursos feministas em redes de comunicação, interrogando como esse movimento se dá, e mais especificamente, como o uso das novas tecnologias de comunicação constrói essas novas histórias feministas.
O Ciberfeminismo teve origem em inúmeras redes eletrônicas, anteriores à World Wide Web (WWW), como por exemplo, as BBS e Intranets universitárias da Austrália e Alemanha. Outro fator responsável pela origem do Ciberfeminismo é a publicação do Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX em 1984, escrito pela biológa Donna Haraway. Donna Haraway propõe um rompimento com o marxismo, o feminismo radical e outros movimentos sociais que fracassaram ao operar com categorias como classe, raça e gênero. Em relação ao movimento feminista, a crítica de Haraway diz respeito ao modo como ele vem operando com a categoria “mulher” de uma forma naturalizada. Sendo assim, seria necessário romper com essa política da identidade e substituí-la pelas diferenças e por uma coalizão política baseada na afinidade e não numa identificação concebida como “natural”. O ciborgue seria, assim, o modelo, o mito fundante dessa nova política de identificação construída a partir da afinidade, longe da lógica da apropriação de uma única identidade. A partir disso iniciam-se as discussões e análises do processo de construção desses novos modos de discurso em redes eletrônicas e suas relações com os movimentos de identidade.
No caso Ciberfeminismo, uma das teses dessa vertente é que o entendimento do espaço da mulher deve ser também entendido no contexto das novas tecnologias, mais especificamente o da Internet. Uma dos problemas nesse processo, proposto pelas australianas Hawthorne e Klein (1999)¹ e pela americana Faith Wilding (1997)², é a de que o Ciberfeminismo ao tentar se alinhar radicalmente às teorias de Haraway, na tentativa de um rompimento com o movimento feminista anterior, acabou por obliterar sua relação com o passado político do movimento e sua relação com os diferentes contextos culturais femininos. Mas ainda que o Ciberfeminismo não tenha as mesmas características políticas de seus antecessores, suas reverberações podem ser percebidas em produções artísticas e na ação ativista de inúmeros grupos e artistas.
São pioneiras as atuações de coletivos artísticos e ativistas como as Old Boys Network (1997-2001), e algumas artistas como Coco Fusco(2001-2003) e Heide Kumao(2002-2008), que pelos seus trabalhos manifestam um discurso
alinhado as teorias ciberfeministas dos anos 1990, e que foram influenciadas, indiretamente ou diretamente, pelo movimento. A ação dessas artistas, bem como suas experiências, deve ser tomada como parte do movimento ciberfeminista, que ocorre em nível global e desterritorializado devido ao uso das novas tecnologias de comunicação em rede. No Brasil, também contamos com o desenvolvimento, cada vez mais crescente, de trabalhos que problematizam a questão da mulher e da tecnologia como, por exemplo, os centros de fomento à relação entre gênero e tecnologia como o CEMINA, bem como a série de trabalhos da artista Helga Stein, Andro-Hertz (2004), e do BR.ADA que recentemente surge como uma tentativa de mapear as relações de gênero , tecnologia e arte dentro do panorama latino-americano.
A co-habitação entre as tecnologias e os movimentos sociais é um fato que marca a contemporaneidade, como por exemplo, o hacktivismo, as rádios comunitárias, dentre outras manifestações. De fato, a tecnologia é apenas uma perspectiva para se olhar para os movimentos sociais e, ao fazermos o uso desta lente, devemos pensar em que medida as novas tecnologias redimensionam esses movimentos. No caso do feminismo, e mais especificamente do Ciberfeminismo, é preciso termos em conta as diferentes camadas e diferentes temporalidades que as tecnologias utilizadas por esses movimentos perpassam.
Apesar de existirem inúmeras definições para o Ciberfeminismo, o entendemos como uma prática feminista em rede, que tem por intuito, tanto politicamente, quanto esteticamente, a construção de novas ordens e desmontagem de velhos mitos da sociedade através do uso da tecnologia (MARTÍNEZ COLLADO e NAVARRETE, 2006)³. A priori, o Ciberfeminismo não é uno, desde o seu surgimento ele se apresentou de diversas formas e grupos, mas identificamos em seu processo algo que o diferencia de outros feminismos anteriores. Enquanto os movimentos feministas dos anos 1960 e 1970 se multiplicaram pelo resultado de sucessivas cisões internas, resultando em grupos que buscavam ações identitárias afins, diferentes grupos ciberfeministas utilizaram a Internet para se reunirem, trocarem experiências e discutirem as relações entre gênero e tecnologia.
Dessa forma, este movimento, mesmo com seus variados grupos identitários, buscou uma aproximação para trocas e ações de experiências de diferentes fundos culturais em conjunto. Muitos dos grupos ciberfeministas utilizam as tecnologias de comunicação, como a Internet, não só para se organizarem em rede, mas também para construírem novos discursos que problematizam as questões de gênero através de trabalhos que vão desde a produção audiovisual e experiências com midiarte até as experimentações artístico-ativistas na Internet. Em suma, o Ciberfeminismo surgiu em uma época onde são cada vez mais polifônicas as narrativas, as identidades e até mesmo as próprias tecnologias. Porém, as potencialidades como movimento social trazidas pelo ciberfeminismo ainda são incipientes no âmbito brasileiro. O significado da comunicação e da informação, e consequentemente, sua globalização, criaram novos espaços de ação coletiva que devem ser, cada vez mais investigados, questionados e publicizados por mulheres, para mulheres, em especial , as brasileiras!
1-WILDING, Faith. Where is Feminism in Cyberfeminism? 1997. Disponível em: http://www.obn.org/cfundef/faith_def.html
2-Cyberfeminism: connectivity, critique and creativity: http://bit.ly/aWKRnM